Quando Deus Silencia
A cena é antiga e íntima. Um homem senta-se sobre cinza, rasga suas vestes e pergunta ao céu por que seus filhos morreram. Outra voz, séculos depois, sobe do madeiro: “Eli, Eli, lama sabachthani?” (Mateus 27:46; Marcos 15:34).
Entre o pó de Jó e o grito da cruz há corações que conhecem a sensação de abandono. Este estudo inicia no chão onde essas vozes se encontram. Não para trivializar a dor, mas para ler a Escritura que fala primeiro à ferida. Ler Jó, Elias, os salmistas, Jeremias e Habacuque é entrar numa liturgia de silêncio onde Deus, por vezes, parece ausente. A Escritura registra esse silêncio e o transforma em caminho de fé.
Jó: o drama está posto em Uz, numa geografia patriarcal que remete ao mundo proto-histórico do Antigo Oriente. Jó 1–3 abre a narrativa com perdas radicais e com o diálogo entre o céu e Satanás (Jó 1:6–12), revelando que o sofrimento pode passar por uma esfera onde os humanos não veem as causas. Jó 23 registra o anseio do justo por Deus: “Oh, que me chegasse hoje; estaria moldando o meu caminho” (Jó 23:8–10).
1 Reis 19: Elias foge de Jezabel até o monte Horebe. Depois do grande sinal em 1 Reis 18, Elias encontra-se sozinho, querendo morrer; Deus não aparece no vento impetuoso nem no terremoto, mas no sussurro manso (1 Reis 19:11–12). O quadro histórico mostra a tensão entre poder político e profecia, e como o profeta enfrenta o silêncio divino após a vitória.
Salmos de lamento e Lamentações: Salmo 22 inicia com o clamor messiânico “Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?” e percorre imagens de abandono para, em muitos salmos, terminar em confiança. Salmos 42–43 articulam a sede da alma por Deus: “Por que te abates, ó minha alma?” (Salmo 42:5). O Salmo 88 permanece singular por sua escuridão persistente, sem retorno explícito à ação salvífica. Lamentações 3 nasce do cerco e da destruição de Jerusalém (586 a.C.) e é a voz do povo que clama em meio ao juízo.
Habacuque 1–3 traz o profeta que reclama: “Até quando, Senhor, clamarei eu e não ouvirás?” (Habacuque 1:2). Historicamente, o livro responde à violência e à injustiça com a pergunta profética, culminando numa visão de fé no Senhor, mesmo sem explicações imediatas.
Novo Testamento: Jesus, ao clamar as palavras de Salmo 22 na cruz, une o cântico de abandono à obra redentora (Mateus 27:46; Marcos 15:34). Paulo, por sua vez, apresenta outra reação ao sofrimento: reconhecer a fraqueza como ocasião da graça (2 Coríntios 12:7–10) e afirmar que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus (Romanos 8:28). Esses cenários mostram que o silêncio de Deus aparece em contextos variados: sofrimento pessoal, perseguição, catástrofe nacional, questionamento profético e obra redentora.
No grito de Salmo 22:1 aparece a raiz hebraica עָזַב (azav), traduzida por “desamparar” ou “abandonar”. Linguisticamente, עָזַב traz consigo a ideia de deixar algo ou alguém; é usada para falar de abandonar um lugar, retirar favor ou romper aliança. Em contextos salmódicos, a palavra descreve uma experiência humana: o justo sente-se deixado por Deus, mesmo quando a aliança permanece. A mesma expressão surge no clamor de Jesus na cruz, ecoando o salmo e nomeando uma sensação real de separação (Mateus 27:46; Salmo 22:1).
As lamúrias de Jó (Jó 3), os salmos de lamento e Lamentações 3 mostram que a Escritura não patologiza a pergunta. Ao contrário, transforma a queixa em diálogo litúrgico. Jeremias e o autor das Lamentações não se privam de afirmar o juízo e o desespero, e, ainda assim, mantêm referências à misericórdia estabelecida por Deus (Lamentações 3:21–24). Habacuque troca a reclamação pela vigília: “Farei queixa, porém estarei atento à visão” (Habacuque 2:1). A Escritura ensina que a oração pode ser tanto queixa quanto escuta.
Jó 23:8–9 diz: “Se eu for para a direita, ele não o percebe; se eu for para a esquerda, não o vejo;…” O texto revela a sensação do justo que procura o rosto de Deus e não o encontra. 1 Reis 19 mostra que Deus pode não estar nos sinais mais espetaculares, mas se revela no sussurro (1 Reis 19:11–12). Essa alternância indica que o silêncio divino nem sempre é abandono ontológico; às vezes é mudança de morada revelatória — Deus não se dá nos ruídos esperados.
Paulo, ao admitir um espinho na carne, recebe a resposta: “Minha graça te basta; porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza” (2 Coríntios 12:9). A postura apostólica é assumir a limitação como lugar da graça. Romanos 8:28 não promete ausência de dor, mas a direção final: “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus”. Esse texto não anula a sensação de abandono; arma-se de esperança teológica ao afirmar propósito último.
- Nomear o desamparo através da lamentação. Os salmos de lamento e Lamentações 3 servem como modelos litúrgicos para expressar dor.
- Persistir na busca do rosto de Deus. Jó e Habacuque ensinam a perseverança na oração e na vigilância (Jó 23:3–10; Habacuque 2:1).
- Habitar com a comunidade. A congregação é chamada a carregar os aflitos, lembrando o mandamento de carregar os fardos uns dos outros conforme a Escritura.
- Reaprender a escuta: como Elias no Horebe, esperar o sussurro que cura (1 Reis 19:11–13).
- Abraçar a teologia do consolo: a graça de Cristo que basta e a promessa de que Deus trabalha até no silêncio (2 Coríntios 12:9; Romanos 8:28).

A sensação de abandono precisa ser atendida por práticas que nasçam da Escritura e se integrem à vida concreta da comunidade. Comece nomeando a dor em voz alta. Use os salmos de lamento como estrutura: leia em voz alta Salmo 22, Salmo 42 e Lamentações 3, repetindo frases que traduzam seu estado diante de Deus. A liturgia da queixa é teologia viva; ela transforma o isolamento em diálogo.
Persistência na oração deve ser cotidiana e concreta. Estabeleça momentos breves de silêncio diante de Deus, intercalados com pedidos claros. Imite Jó que busca o rosto de Deus: ore com perguntas honestas e, em seguida, com escuta intencional. Em práticas digitais, desligue notificações durante esse tempo para que o silêncio permita o sussurro esperado em 1 Reis 19:11–12. Consulte também estudos que aprofundem o contexto histórico, como este sobre o judaísmo do Segundo Templo em https://ensinodabiblia.com.br/judaismo-do-segundo-templo-nos-evangelhos/ para entender a religiosidade que moldou muitos dos clamores do AT.
A comunidade tem papel central. Reúna-se com irmãos para ler as Escrituras juntos, partilhar lutas e orar. A igreja é chamada a carregar os fardos uns dos outros; peça e ofereça visitas, oração e acompanhamento bíblico. Para ministérios, implemente grupos de lamentação e aconselhamento que usem a Escritura como guia e que integrem recursos profissionais quando necessário.
Cultive disciplinas que redirecionem o coração às promessas bíblicas. Memorize Romanos 8:28 e 2 Coríntios 12:9; repita-os em momentos de aflição até que a mente se reconfigure pela esperança. Pratique jejum breve com oração, leia passagens do Antigo Testamento para perceber como o povo de Deus pediu respostas durante crises, e consulte meditações sobre as parábolas de Jesus em https://ensinodabiblia.com.br/parabolas-de-jesus/ que iluminam a postura do Reino em tempos de ausência.
Aja com prudência pastoral ao acompanhar alguém em silêncio divino. Use perguntas abertas, valide sentimentos e ofereça ritos de lamentação. Encoraje sacramentos, confissão e presença corporal como meios de graça. Integre também ambientes artísticos e litúrgicos: cantos inspirados em salmos, orações escritas e meditações que permitam articular a queixa como verbo de fé.
Se houver risco de danos físicos ou ideação suicida, procure imediatamente ajuda clínica e suporte emergencial. A Escritura orienta a proteção da vida, e a igreja deve agir com responsabilidade prática e amorosa.
O silêncio de Deus rasga as seguridades humanas e convida à fé mais profunda. A Escritura não promete explicações fáceis, mas apresenta um povo que aprende a clamar, a esperar e a louvar mesmo sem respostas imediatas. Jesus nas palavras da cruz uniu o grito de abandono à obra redentora, mostrando que o sofrimento participa do drama da reconciliação.
Permaneça em oração que é simultaneamente queixa e escuta. Persevere na comunidade que sustenta seus passos, abrace a disciplina que reconstrói a confiança e permita que as Escrituras moldem suas palavras quando a voz humana falta. A graça que Paulo proclama é corrente mesmo na fraqueza; aceitar isso não diminui a dor, mas funda a esperança na fidelidade divina.
Rogo para que, ao findar este estudo, a sua alma encontre coragem para nomear o sofrimento, para buscar a face de Deus com honestidade e para viver a fé que resiste ao silêncio. Que a igreja seja espaço onde a lamentação é orada e onde o sussurro divino pode finalmente ser escutado.
- Leitura interna recomendada: https://ensinodabiblia.com.br/judaismo-do-segundo-templo-nos-evangelhos/
- Leitura interna recomendada: https://ensinodabiblia.com.br/parabolas-de-jesus/
Referências teológicas selecionadas
- D. A. Carson, Comentário (Edições Vida Nova), estudo sobre interpretação neotestamentária e a voz de Cristo na cruz.
- Matthew Henry, Comentário Bíblico Completo, notas expositivas sobre salmos, Jó e profetas.
- Editora Paulus, comentários e estudos sobre Lamentações e a tradição dos salmos de lamento.
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D. A. Carson, Comentário (Edições Vida Nova)
Matthew Henry, Comentário Bíblico Completo
Editora Paulus, estudos sobre Lamentações

